- Para!
- Ela nunca vai falar deste jeito! Eu preciso mostrar ‘argumentos’ pra ela falar!
- Diga garota, onde eles estão!
- Tá brincando, eu jamais falarei!!!
O homem bruto, alto, forte, já suando, pegou uma espécie de chicote feito de pequenas tiras de couro mal trançadas e bateu no braço esquerdo da menina. O direito já estava vermelho de sangue, assim como sua nuca e pernas.
- Fala!
- Ela vai ter uma síncope. Vou pegar um pouco de água para ela...
- Maldito decreto este que me obriga ter um juiz na minha sala de interrogatório...
Ele chamava de “sala de interrogatório” um porão da delegacia. O lugar era úmido devido à proximidade do lago, a única janela do local o tornava escuro e havia instrumentos de tortura dependurados nas paredes. Mas ele preferia chamá-los de “argumentos”.
O juiz, um homem de meia idade, franzino e calvo, trazia a água. Não por bondade, mas para que ela falasse algo e ele pudesse ir embora. Ouvindo as informações, ele tomaria as providências. Ele só precisava disso, afinal, ela já havia confessado.
- Acho que vou ter que mudar de “argumento” para você começar a falar...
Pegou uma pequena faca. Começou a fazer pequenos cortes na sua coxa. Jogou então sal nas feridas. Ela gritava.
- Ela está sangrando demais. Se ela morrer, você vai ser considerado traidor da Família Real...
- Não sei o porquê...Ela será condenada traidora da Rainha...Vai morrer de qualquer maneira depois de condenada...
- Você sabe que, para os membros da Família nós não podemos adiantar a sentença...Tem que esperar até o fim do julgamento...
- Ela é apenas prima da Rainha!
- Não importa...Está entre os protegidos...
Incorfomado de não poder matá-la, começou a olhar para ela com desprezo. Gritou um palavrão, pegou outro chicote, desta vez com minúsculos pedaços de ferro amarrado às pontas.
- Eles foram...Todos foram embora...Fugiram...Só deixaram você...E sabe por quê? Olha para mim! Porque você é a “miladysinha”, priminha da Grande Senhora. Acharam que te poupariam...Deixaram o peso desnecessário...Agora fala! Você sabe onde eles se esconderam! Você sabe onde eles se reúnem! Fala!
Ela reuniu forças e disse:
- Ja...ja...jamais....Fala...rei...
Ele levantou a mão, estava disposto a usar toda a sua força para machucá-la quando alguém bateu na porta.
O juiz foi atender. Era um homem baixo e gordo que cochichou algumas palavras ao juiz assim que ele abriu a porta. O juiz se demonstrou muito surpreso com as palavras que estava ouvindo, mas baixou a cabeça, dizendo:
- Se Ela quer, deixe a vir. Não tente detê-la. Ela pode tudo. Mas avise-a do estado deplorável da milady...
O homem gordo saiu, voltando em seguida. Atrás dele entrou uma mulher muito bela, de cabelos loiros, vestindo um belo vestido e uma capa verde que lhe cobria os ombros. Ao chegar, todos na sala fizeram uma reverência. Ela retirou então a capa, entregando-a ao homem gordo.
- Saia daí, seu imundo. Vou conversar um pouco com ela.
Fazendo novamente uma reverência, ele rapidamente saiu, dirigindo-se a um canto da sala.
- Querida, nos criamos juntas. Quando me disseram que era você quem havia sido capturada, eu lamentei muito...Logo você, que é da minha família, filha da irmã de meu falecido pai...Você, que conhece muito bem o poder divino que é dado aos soberanos...Você, que foi criada com o costume do culto ao Soberano Real...Como pôde?
Ela começou a chorar. A prima, agora Rainha, havia sido uma das suas grandes amigas de infância. Ela jamais desejaria magoá-la, mas a prima também nunca entenderia a sua mudança.
- Eu estou disposta a perdoá-la se você, amanhã, no seu julgamento, pedir perdão a mim e novamente adorar os Antigos Soberanos.
Ela sabia que, se continuasse negando o suposto poder divino dos antigos reis do seu país, ela seria morta. Seria condenada a morte. Mas decidiu prosseguir.
- Me desculpe – disse a menina, quase desmaiando – não posso.
A Rainha, uma jovem moça que jamais desejaria que sua prima passasse por aquela aflição pediu para que todos saíssem do lugar. Prontamente obedeceram, eles realmente temiam a Rainha, respeitando e adorando a sua figura como uma deusa. Ela se ajoelhou na frente dela e pronunciou seu nome com doçura. Abaixou a cabeça e olhou novamente para ela com lagrimas nos olhos.
- Eu gosto muito de você. Sempre fomos amigas, íntimas...Não queria que isso acontecesse com você. Aquela lei...Era somente para prender os rebeldes...Como pôde?
A mesma expressão que ela havia usado no primeiro momento em que ela falou com a prima agora tinha uma conotação muito mais emocionada.
- Eles não podem me ver assim...Sou a sua Rainha...A Soberana...Se eu gastar muito tempo aqui falando com você decerto pensarão que eu estou amolecida por seu parentesco comigo Não permitirei...Mas deixo com você a possibilidade de viver. Se amaná admitir que errou, lhe mandarei como exilada para outro país...Não deixarei que morra. Pense em você.
A Rainha enxugou as lágrimas, se recompôs e chamou os outros. As ordens eram de levá-la para o calabouço do castelo. Amanhã ela seria julgada diante da cidade toda. O juiz protestou, com certo receio:
- Suas ordens são sempre bem vindas, majestade. Porém quero ressaltar que a senhorita ainda nada falou que pudesse nos levar até os rebeldes religiosos...
- Se ela nada falou até agora, certamente não falará. Já faz dois dias que ela está neste lugar.
- Como já disse, suas ordens são bem vindas, Senhora Maravilhosa. E nada poderá ser contra elas.
Alguns guardas vieram buscá-la para que ela pudesse passar a noite no calabouço. Em nada se diferenciava do ambiente horrível da sala de interrogatório. Mas pelo menos ela pode ver a lua e as estrelas. Talvez fosse a última vez.
No dia seguinte, os mesmos guardas vieram buscá-la. No caminho ela pensava se a pena seria justa. A lei dizia que todos os que se recusassem a adorar as imagens dos Antigos Soberanos seria condenado por alta traição e a pena seria a morte. Já fazia muitos anos que a lei havia sido escrita, numa época muito cruel. Já se faziam mais de cem anos que a lei não era aplicada.
A jovem Rainha estava naquele momento em seu quarto sendo preparada pelas suas damas de companhia. Ela também pensava no julgamento que estava preste a acontecer. Lembrou de como ela havia ordenado para que os rebeldes – os que não quisessem seguir religião oficial do país – fossem presos. Aquelas atitudes de certa forma seriam para mostrar a nação que ela era uma Rainha forte...Tão forte quanto seu irmão teria sido. Ele seria o herdeiro do trono se uma misteriosa doença não tivesse o levado na flor da idade. O pai, muito abalado com a perda do único filho homem morreu em seguida. Ela, a nova Rainha, queria ser melhor do que o seu irmão teria sido. Seu imenso orgulho seria um dos motivos da morte da sua prima.
Dirigiram-se para a Praça do Julgamento. Antigamente era costume julgar as pessoas em praça pública. A menina muito machucada estava num banco. A rainha sentou-se num belo trono. O juiz levantou-se para dar os motivos da sentença. Para aquele tipo de crime não havia defesa nem acusação. Uma vez confessado o crime iniciava-se uma espera terrível pela morte. Quando o juiz começou a falar, a Rainha o interrompeu:
- Arrependa-se, garota. Poderemos achar uma alternativa para o seu caso. Diga: quem são os seus deuses?
Naquele momento, milhares de coisas passaram pela sua cabeça. Foram apenas dois minutos, mas pareceram duas horas. Ela via os rostos de alguns dos seus irmãos em Cristo na multidão. Lembrou-se do dia em que foi presa.
Ela voltou dentro da casa onde se reuniam para buscar uma criança. Encontrando-a, a fez correr e sair pela porta dos fundos. Neste momento apareceram guardas reais que, por pena, deixaram criança ir, mas prenderam-na. Ela não se arrependia de ter voltado. Mas será que deveria se arrepender da sua fé?
Se ela dissesse naquele momento que adorava os antigos deuses, ela iria viver. Mas sabia que Cristo era maior. Não podia negá-lo. Sentiu um conforto no coração e, com as suas últimas forças disse:
- Meu único e verdadeiro Deus é o Senhor Jesus Cristo.
Os olhos da Rainha se encheram de lágrimas. O juiz continuou. A menina fechou os olhos e ouviu o juiz dizer seu nome pausadamente.
-...é declarada culpada do crime de alta traição e sua pena será a morte na forca, conforme a lei dos nossos Antigos Soberanos.
Nos seus últimos minutos a menina fez uma oração agradecendo pela sua vida, pela vida dos seus amigos, agradecendo a Deus porque eles não haviam sido pegos como ela e que somente ela morreria. Já a caminho da forca, cantou baixinho uma canção:
- o Senhor me ama, eu sei. Ele cuida de mim. Eu sei que para o céu irei. Deus está comigo...
Todos estavam parados, pasmos. Pode-se ouvir em todo lugar a canção que ela cantava, apesar de ela estar cantando muito baixo.
No dia seguinte apareceu pintado no lugar em que ela foi morta:
“Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos” João 15.13.
Aquela morte foi um choque em toda cidade. Todos foram para casa naquele dia se questionando, questionando a sua fé. Muitos se converteram, disseram que queriam seguir este Deus. Aconteceram mais algumas mortes, mas a fé deles só aumentava. E nenhum deles se arrependeu.
sábado, março 11, 2006
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